26 Feb 2017

Duelo de capitães: e agora, José? (Águas e Travaços entrevistados em conjunto por Carlos Pinhão)

 Em Outubro de 1958 o nosso pai iniciava a sua 9ª época na frente do ataque do Benfica num apuro de forma notável, «igual ao seu melhor», depois de um período de descrença que muitos julgaram irremediável. Chegara até a pôr-se a questão de escolher um sucessor para o comando do ataque rubro! Mas qual quê!...  com 13 golos marcados em nove jogos (média de 1,4), seguia lançado na frente dos marcadores, a caminho da sua terceira Bola de Prata. A inclusão na equipa de dois jogadores - Mendes e Chino - excepcionalmente talhados para a luta na grande área, proporcionava-lhe, na qualidade de avançado-centro, mais oportunidades de concretização.
Em resultado disso, foi mais uma vez eleito A Figura da Jornada. Como se escreveu, todos voltavam a «acreditar que o Águas continuaria a ser ele mesmo e ainda por muitos anos. Um rematador terrível, sim, mas também um jogador completo, hábil como poucos, fino a jogar, eficaz, convincente. Quando a bola chega aos seus pés o futebol toma logo outra graça, outro encanto. Águas, o dos pés de oiro e o da Bola de Prata, é, na verdade, uma jóia preciosa do futebol português.»


    Na tarde do dia 7 de Dezembro de 1958, o Benfica recebeu no Estádio da Luz o campeão Sporting, que levou de vencida por um expressivo 4-0.

«Se existia a lenda de que Águas não era um jogador de combate, ela deve ter-se esfumado por completo, a partir de ontem. Os dois golos que marcou e aquele que ofereceu a Mendes, em “bandeja de prata”, após uma jogada magnífica de persistência, de poder e de domínio de bola, são apenas uma pequena parcela da sua excelente exibição. Em tudo e por tudo, provou ser ele, ainda, o melhor avançado-centro do futebol nacional. O avançado-centro benfiquista rematou sempre que se lhe deparou oportunidade. Teve intervenção directa em três golos. No primeiro o mérito da jogada, rematada por Mendes, pertenceu-lhe quase todo. No segundo, confirmou o remate de Coluna, como que a “dizer” que se não fosse golo à primeira, seria à segunda. No quarto tento, de sua autoria, revelou todo o sentido de oportunismo que deve emoldurar o jogo do avançado-centro.»

Uma semana passada sobre o jogo dos 4- 0, os «capitães» Águas e Travaços eram entrevistados em conjunto!... por Carlos Pinhão

    Dois “capitães”, dois Josés, dois dos melhores futebolistas de sempre do futebol português, Águas e Travaços prestaram-se de bom grado a este “desafio” suplementar de se defrontarem na terça-feira, numa espécie de “prolongamento” do sensacional Benfica – Sporting, que começou no domingo e não acabou ainda nem acabará tão cedo, pois continuará a dar margem a acesa discussão e acalorados comentários.
... Acesa e acalorada, apesar de o frio e a chuva ficarem para a história como elementos identificadores deste encontro de domingo. De facto, muito se irá falar “naqueles 4-0 duma tarde em que choveu muito”...
      O primeiro cumprimento de Águas para o seu adversário, ao vê-lo com ar abatido, foi precisamente um caloroso “Anima-te, Zé!”, acompanhado de amigável palmada nas costas.
   Travaços, apesar de lhe ter pertencido a ideia de “jogar em casa” nesta entrevista, a compensar a deslocação dos sportinguistas ao campo do Benfica, não foi muito cordial na recepção àquele “indesejável” visitante que metera dois golos ao Sporting.
E chegou a pedir ao filho:
- Zé António, vai buscar a espingarda!
Águas atemorizou-se:
- Não faças isso, porque ainda te quero meter mais dois golos na segunda volta.
Foi ainda Águas quem continuou no uso da palavra:
- Mas estás mesmo aborrecido? Não tens razão para isso. Fartaste-te de jogar...
 Travaços explicou o seu estado de espírito:
- Preferia jogar menos e ganhar.
E Águas iniciou o duelo de gentilezas:
- Essas coisas acontecem. Já tenho jogado melhor e perdido. Mas, francamente, gostei de te ver...
Travaços pagou-se na mesma moeda:
_ O Benfica está a jogar. Tem uma equipa de peso, principalmente na linha avançada.
E recordou:
- Como são as coisas... Há anos, a equipa do Sporting tinha, normalmente, mais envergadura, mais força, e, no Benfica, havia, porventura, mais habilidade, mas também mais fragilidade. Pelos vistos, as equipas evoluiram ao contrário. Pelo menos, foi o que se viu no domingo.
- Que lhe pareceu o Sporting, Águas?
Pensou duas vezes:
- É evidente que o Sporting não está bem. Não está, pelo menos, tão bem como se deve esperar e exigir ao Sporting. Mas todas as equipas passam por estes períodos, e, no Benfica, quantas vezes não atravessámos também fases como esta e sempre pudemos recuperar. Toca a todos...
Travaços pediu a palavra:
- E a nossa recuperação pode até perfeitamente verificar-se ainda neste campeonato. Assim como o Benfica nos ganhou cinco pontos na primeira volta, por que não a inversa na segunda? Há ainda muito jogo...
Águas confirmou:
- Na verdade, estamos longe de ter o título na mão. Repare que bastou empatarmos em Évora para logo ficar tudo tremido. E nem se pense, por exemplo, que, neste momento, tememos o Sporting menos do que o Belenenses ou o F. C. Porto. Bastava que tivéssemos perdido com o Sporting para que o campeonato, práticamente, tivesse voltado ao princípio. Assim mesmo, ainda não está em meio.
Travaços foi “amigo da onça”:
- E, qualquer dia, o Benfica é capaz de começar a andar para trás. Até pode ser já neste domingo que vem, no Barreiro.
Aguas driblou:
- Domingo, acautelem-se vocês com o Belenenses, que bem podem. No entanto, digo-te já que estou convencido do vosso triunfo. O Sporting não está tão mal como dizem e pode perfeitamente vencer o Belenenses. Pode e deve.
Travaços corroborou:
- Temos de ganhar mesmo. Isto é uma espécie de fatalidade: - Temos de dar o título ao Benfica. Se não for agora, é capaz de ser no ultimo jogo do campeonato, que volta a ser um Belenenses – Sporting, como da outra vez.
Águas emendou:
- Agradece-se a intenção, mas, nessa altura, o Benfica não deve precisar de favores. Para já é que nos dava jeito, realmente. E tenho uma grande fé no Martins, como da tal vez. E recomendou ao Travaços:
- Tu é que podias dizer ao treinador para pôr o Martins a jogar no domingo. É infalível!...
   Decididamente, Águas e Travaços iam depressa de mais e, se não os travássemos, acabavam o campeonato antes de acabarmos a entrevista. Tivemos de impor a nossa “autoridade” para que retrocedessem de novo até ao enlameado Estádio da Luz e Águas foi o primeiro a regressar ao Benfica – Sporting:
- O jogo deixou-me a melhor impressão por todos os motivos: - ganhámos, fiz dois golos e esta foi a minha maior vitória sobre o Sporting; antes, já ganhara, uma vez, por 3-0. No entanto, este jogo também me deixa uma lembrança desagradável, porque sofri uma distensão e não sei se poderei jogar no domingo.
Novamente se gerou controvérsia, porque Travaços duvidou da natureza da lesão do benfiquista:
- Qual distensão! A correr como corrias, como é que podias ter uma distensão?
Águas insistiu:
- O “Pilão” confirma que é distensão. Ainda me dói e não sei mesmo se poderei jogar no domingo.
Mas Travaços manteve-se na sua:
- Só se não jogares é que acredito e, então, acredito também que a vida do Benfica pode mesmo começar a andar para trás já no domingo.
Águas reagiu:
- Não é preciso eu jogar. “Aquilo” já anda sózinho; até a bola já está ensinada.
 ... Assim é que nós os queríamos ver: amigos, amigos, futebol á parte. E, para complicarmos a questão, perguntámos a Águas, como que a querer forçá-lo a uma confidência:
- Mas isso da distensão é mesmo verdade?
Travaços antecipou-se:
- É “fita”!
- “Fita”?... “Fita” fizeste tu, no fim do jogo, a ver se o árbitro expulsava o Alfredo...
Travaços explicou:
- Não digas isso. Ele “deu-me” mesmo; pisou-me...
   Decididamente, tínhamos ido longe de mais e era altura de travarmos os ímpetos. “Apitámos” para o intervalo e o “gong” salvou ambos... E a entrevista. Falou-se de outras coisas. Do tempo. “E esta chuva, hein!...”
    Quando voltámos a conceder a palavra a Travaços, tudo serenara e o sportinguista pôde fazer calmamente o seu depoimento:
- Assim como o Águas encontrou um motivo desagradável no meio de tantas recordações agradáveis que este jogo lhe deixa, também eu posso ainda retirar uma boa impressão de entre tantas negativas. Estas, evidentemente, estão em maioria: primeiro, porque perdemos e porque nos atrasámos na tabela, e, depois, porque é a minha maior derrota sofrida perante o Benfica. Se bem me recordo, esta é até a maior derrota que sofro contra equipas nacionais. Já vêem que tenho motivos mais do que suficientes para estar contrariado.
 - Qual é, então, a boa impressão? – apressámo-nos.
- É uma questão talvez de vaidade ou egoísmo – disse Travaços – mas parece-me que é humano regozijar-me por ter demonstrado, uma vez mais, que ainda estou “vivo”. Mais uma vez fui tido como acabado e de novo pude voltar em boa “forma”, como toda a Crítica assinala. No domingo anterior, por ser contra o Covilhã, ainda se pôs em duvida a minha “forma”, mas, agora, não podia ser mais posto á prova, jogando fora de “casa”, contra um Benfica num grande momento num campo encharcado, que torna o trabalho muito mais esgotante. Se se reconheceu, depois de tudo isto, que o “velhote” ainda foi no fim do encontro que jogou mais, parece-me que tenho direito a uma pontinha de satisfação.
- Apoiado! – secundou Águas com entusiasmo e convicção. E acrescentou: - No ano passado, com vinte e sete anos, também já me chamaram velho, mas, este ano, com vinte e oito, estou novo em folha e reconhece-se que me encontro na minha melhor condição física de sempre. Por acaso, é verdade; sinto-me agora melhor do que quando tinha vinte e poucos anos e, por isso, compreendo perfeitamente que te sintas também em plenas condições (dirigia-se a Travaços, claro) aos trinta e dois anos.
   Voltara  a reinar a boa paz. Oficiais do mesmo ofício, os jogadores de futebol têm problemas comuns e manifestam com frequência uma solidariedade sincera e compreensível.
Estava tudo dito sobre o Benfica – Sporting do ultimo domingo, mas havia ainda outras perguntas  a fazer “para a história dos desafios entre os velhos rivais”.
Para começar, a mesma pergunta para ambos:
- Qual o Benfica – Sporting que lhes deixou melhores recordações?
- Não há Benfica – Sporting como o primeiro – respondeu Travaços – principalmente quando se ganha por 6-1 e nos cabe fazer três golos. Note, no entanto, que essa não foi a minha primeira vitória sobre o Benfica, pois, ainda a jogar pela C. U. F., já uma vez tinha batido o Benfica por 4-1, em jogo para o Campeonato de Lisboa.
José Águas:
- Até aqui, o meu Benfica – Sporting de maior agrado era o da final que vencemos por 5-4. Agora, já nem sei explicar; estes 4-0 souberam-me muito bem e, se ganharmos o campeonato, talvez os eleja para o primeiro lugar.
Agora, e a propósito, uma nova pergunta, mas só para o benfiquista:
- Quanto à “Bola de Prata”...
Não pôde disfarçar um sorriso:
- Sim, não há duvida de que vou bem embalado, mas ainda é muito cedo para deitar foguetes. Ainda há muitos jogos e há muito quem chute. Até mesmo dentro da minha equipa, tenho rivais perigosos.
Uma pergunta indiscreta:
- Isso desagrada-lhe?
Resposta “a cem à hora”:
- Nada disso, pelo contrário. O campeonato do Benfica é muito mais importante do que esse meu campeonato. De resto, essa actual abundancia de chutadores no ataque benfiquista até me tem dado jeito, porque as atenções das defesas contrárias, agora, não convergem especialmente sobre mim e essa dispersão de cuidados concede-me mais folgas. Pelo menos, tem sido assim até aqui.
- Foi assim contra o Sporting? – perguntámos-lhe.
   Insensivelmente, voltáramos de novo ao sensacional encontro da Luz. De resto, não admira; começámos mesmo por dizer que a discussão suscitada por mais este Benfica-Sporting não acabaria tão cedo. E o novo assunto interessava, realmente, discutir. Águas concordou:
- De facto, o respeito que Mendes, por exemplo, incute, e com razão, pode ter-me facilitado a vida. E, em relação á época passada, quer-me parecer que um dos jogadores que mais falta está a fazer ao Sporting é o Osvaldinho. Quando ele jogava recuado, tudo se tornava mais difícil. Pelo menos, quanto a mim, é o tipo de defesa que eu mais temia.
Travaços concordou que o “internacional” brasileiro faz muita falta, lamentando a lesão que o tem mantido afastado, e observou também que todos os avançados benfiquistas estão, de facto, a chutar muito e bem.
- E não há sombra de egoísmo da nossa parte – explicou Águas. – Pelo contrário, até nos contraria a todos, por exemplo, o grande azar que tem perseguido o Chino, pois ainda não conseguiu estrear-se. Ele já diz que dá uma festa, quando fizer um golo, mas nós é que, nessa altura, lhe fazemos a festa a ele.*
- A propósito – disse Travaços – surpreendeu-me agradávelmente a extrema correcção do madeirense, um jogador que gozava de má reputação. No domingo, vi-o até ir repreender o Neto, quando este teve uma atitude impensada para comigo.
    Era altura de terminar. Por mais voltas que déssemos, acabávamos sempre por ir parar ao Benfica-Sporting, o mais aliciante e inesgotável tema do futebol português.

Na semana seguinte, no dia 21 de Dezembro, no jogo C. U. F., 1 – Benfica, 4 Chino marcava o seu primeiro golo pela equipa de honra do Benfica. «No fim do encontro», escrevia o jornalista Cruz dos Santos, «Otto Glória e os demais responsáveis benfiquistas, abraçavam e felicitavam efusivamente o futebolista madeirense, aos quais este correspondia com um sorriso franco, aberto e, vamos lá, até com uma ponta ainda da emoção que revelara, minutos antes, ao ver consumado o seu feito. Todas estas manifestações nos feriram a atenção pelo que evidenciavam de espírito de camaradagem e de solidariedade, mas aquela que mais ainda nos impressionou foi a assumida por José Águas que, surgindo da cabina no momento em que Chino acabara de se afastar, proferiu estas palavras para os demais circunstantes: “Dou-lhes a minha palavra de honra de que senti maior alegria quando o Chino marcou o golo do que se eu tivesse jogado e obtido três golos.”»
A solidariedade do meu pai para com o seu companheiro Chino ficou à vista, em 24 de maio 59 num jogo para aTaça de Portugal em que o jovem companheiro teve o seu dia de glória.. «No Benfica, 4 – Tirsense, 0, Chino fez três golos, beneficiando, para o efeito, da renúncia, do recuo e do companheirismo de Aguas, que, desajudado pelo público, “vingou-se”, ajudando bem o madeirense. No Benfica, o cargo de “capitão” da equipa não foi desempenhado por Águas, mas por Costa Pereira.» Assim se vê o temperamento «impressionável» do meu querido pai...

Entretanto no Livro do Bebé, ficava registado que no dia 28 de Dezembro de 1958 fomos pela primeira vez ao circo, no Coliseu. «Esteve sempre muito séria e sossegada, mas prestando a maior atenção a tudo. Só em casa se animou a contar alguma coisa do muito que viu». Tinha eu dois anos e meio. Na véspera de Natal fui ao cinema pela primeira vez, ao Politeama, ver «A gata borralheira». «Gostou do que viu, adormecendo a meio do espectáculo.»


capítulo 16 do livro 'José Águas, o meu pai herói', de Helena Águas

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